Fumaça
Conto: Quando ouvir pode significar salvação. Uma queda entre mundos, silenciosa.
— Eu matei o Lucas. — As pernas dele balançavam despreocupadamente, de maneira quase displicente, ignorando a altura assustadora na qual nos encontrávamos. Sua voz soara como se uma afirmação daquela fosse algo normal e não, no mínimo, perturbador.
— O que? Como assim? Do que você está falando? — Perguntei desconcertado. Aquela calma dele era inquietante.
— Você sabe o que eu fiz ontem? Você tem ideia do que eu estava fazendo? — Ele indagou olhando para frente, com um olhar perdido. A maior parte do seu rosto estava coberta por um capuz, mas ainda assim eu podia perceber que ele estava apreensivo pelo modo como mordia os lábios. — Não, é claro que não sabe. Como ele poderia saber, idiota?! — Eu sabia que aquilo não era mais uma pergunta, mas uma afirmação. As mãos dele tremiam. Naquele ponto, eu não sabia se de frio da noite que adentrava ou de alguma outra coisa.
— Cara, vai com calma. Comece do começo. O que aconteceu? — Respondi preocupado. Até aquele momento eu não entendia por que estávamos ali, justo ali e, para dizer a verdade, eu tinha medo de saber. O céu arroxeado engolia impiedosamente o pouco do tom acobreado que os últimos minutos de luz solar conferiam à medida que conversávamos.
Ele retirou as duas mãos dos bolsos da blusa de frio. Numa delas segurava um maço de cigarros e, na outra, um isqueiro prateado que eu conhecia muito bem. Ele fez sinal com a mão, como quem oferecia um. Recusei. Com algum custo ele acendeu o cigarro — ventava muito — e após uma longa tragada, ele prosseguiu com a conversa, parecendo retirar as palavras do fundo dos pulmões, expulsando-as com a fumaça.
— Ontem eu passei a noite toda chorando. Mas não chorando um pouquinho como você deve estar imaginando. — Disse concentrado, dando outro trago no cigarro. Não havia alívio naquelas palavras, apenas angústia. Muita angústia. Eu não imaginava nada. — Eu chorei pateticamente, deitado no chão frio do meu quarto escuro, implorando por ajuda. Pela ajuda de qualquer um. Uma cena deplorável, para dizer a verdade. Uma cena realmente digna de vergonha.
— Por que você estava chorando? Por que você está me contando isso? — Aquela quietude dele, aquela serenidade... algo naquela atitude me incomodava. Me incomodava muito.
— Você não é uma pessoa muito paciente, não é mesmo? Não, nunca foi. E ainda assim, você é a única pessoa no mundo que sinto que poderia me entender... de alguma forma. Se é que eu posso ser entendido. – A brasa queimava lentamente na ponta do cigarro entre os dedos dele e, naquele momento, era praticamente a única luz que podia se ver. O silêncio era absoluto e incomum. – A única pessoa que poderia me ouvir. Ouvir de verdade. Mas você acha que eu gosto de te contar isso? Não, não gosto. Me sinto ridículo em confessar uma coisa dessas, mas esse é quem eu sou. — Ele deu uma pequena gargalhada sarcástica. – Mas se você quer entender, tem que ouvir a história do meu jeito.
— Tudo bem, então continue. Não foi minha intenção aborrecer-lhe. Me desculpe. – Justifiquei. Ele assentiu. O ar ia ficando pesado em torno de nós. Ele respirava lentamente. Eu não entendia os rumos que aquela conversa tomaria.
— Me diz uma coisa... quando você presencia um acidente com vítimas, qual a sua reação natural?
— Bom... eu acho que eu corro para auxiliar as vítimas ou chamo ajuda, sei lá. — Respondi intrigado.
— E você acha que todas as pessoas fariam isso? — Ele perguntou brincando com o cigarro entre os dedos. Seu tom de voz era sério.
— Bom, não sei, mas acho que a maioria...
— Deixe-me fazer outra pergunta... ao que você estava conectado alguns minutos atrás, quando ainda usava o telefone? — Disse apontando para o objeto em minhas mãos. — Pode abri-lo e me mostrar?
Instintivamente, desbloqueei o telefone, exibindo a última tela que eu visitara: uma rede social de fotos. Na sequência havia duas imagens. Uma de um rapaz de braços abertos, sem camisa, na frente de uma paisagem montanhosa, e a outra de um gato enrolado em um lençol branco.
— O que você vê? — Disse sem nem mesmo olhar para o aparelho em minhas mãos.
— Uma foto de um gato em um lençol e um amigo em uma viagem para os montes...
— O que você vê? — Ele repetiu a pergunta. Eu não sabia o que ele queria dizer. Diante do meu silêncio, ele continuou. — Entre em algum perfil. Qualquer perfil, por favor.
Entrei no perfil da foto de gato e era o user de uma amiga. Seu grid de fotos continha várias imagens com um grau de estética impressionante, combinando tons de cores, fundos e padrões de forma. Selfies eram a maioria, mas sempre respeitando essa padronização. Rolei mais um pouco o perfil e percebi que os tons iam se alterando, mas sem nunca deixarem de combinar. Era um verdadeiro trabalho artístico.
— O que você vê? — Ele insistiu na pergunta. Dessa vez eu tinha uma resposta.
— Um perfil muito bonito e organizado. Ela realmente se dedica muito a tirar fotos com estética.
— Entendo. Posso pedir que abra outro aplicativo? Pode abrir aquele de mensagens curtas? — Assenti com um murmúrio e, enquanto eu procurava o app, ele deu outra tragada profunda no cigarro. Já estava completamente escuro e eu sentia frio. Imaginei que ele não, pois a fumaça lhe aquecia por dentro. — E agora, o que você vê?
— Eu não estou entendendo o que isso tem a ver com qualquer coisa, mas... — Comentei já sem paciência. — Ahn, algumas postagens sobre notícias, coisas aleatórias sobre o dia de alguém, piadas, imagens com piadas, mais gatinhos, alguém bravo, alguém reclamando... não sei o que você quer dizer.
Ele se levantou perigosamente na borda e soltou a fumaça lentamente, formando um anel em torno de si, enquanto girava, parado no mesmo lugar.
— E, ainda assim, você não consegue ver. NINGUÉM NUNCA CONSEGUE. — Ele estava verdadeiramente nervoso. Eu não entendia onde ele queria chegar com aquilo tudo. Fiquei ansioso ao vê-lo em pé daquela forma, temendo que ele caísse.
— Ei, se acalme. Senta aqui de novo. Me explica com calma o que você está pensando... — Implorei.
— Não vou me assentar. Sabe, é uma tênue linha. — Ele abriu os braços e simulou andar em uma corda bamba bem no limítrofe da borda. Meu coração acelerou — Um equilíbrio sutil. E ainda assim, ninguém percebe. Ninguém nota. Diga-me, sobre o acidente que lhe perguntei no começo, e se você pudesse evitá-lo, você o faria?
— Sim, claro que evitaria — Respondi apreensivo. Ele voltou a ficar apenas parado, com os olhos vidrados no horizonte escuro. Meu ritmo cardíaco desacelerara.
— Claro, claro que evitaria. E se salvar essas pessoas custasse a sua vida? Soa bem heroico né? Deixe-me reformular: E se salvar essas pessoas custasse o movimento de todos os seus membros e uma vida inteira tetraplégico e você soubesse desse risco? E se salvar alguém custasse a melhor parte de você? Ainda assim você salvaria? — Ele abafou uma risada baixa. Me senti sem resposta e ele continuou. — Você já não sabe mais, não é mesmo?
O cigarro em suas mãos chegava ao fim. Ele arremessou a ponta do cigarro para o escuro e retirou mais um do maço, acendendo logo em seguida. Após uma longa tragada, ele se agachou ao meu lado, com olhar cada vez mais distante e, ao mesmo tempo, mais cheio. Eu estava ainda mais impaciente e queria explodir.
— Você está me enrolando e não vejo essa conversa chegando em lugar algum. Me responde as coisas que eu perguntei. — Eu disse rispidamente. Não aguentava mais essa enrolação.
— Sim, claro. Eu imaginei que você acabaria dizendo isso. Você está impaciente. — Ele completou sem esboçar qualquer reação ao meu nervosismo. — Nesse mesmo momento, você deve estar pensando em alguma de suas conexões. Alguém que você tem que responder. Alguém que deveria ter respondido. Um post que marcou para ler depois. Qualquer coisa assim. Você, como todo mundo, vive em dois mundos. O real, e esse novo mundo. Você está aqui e lá. Mas onde você está realmente conectado?
— Você é um desses que insinua que essas conexões não são reais? — Perguntei indignado. Eu conhecera tanta gente interessante e legal nos últimos anos usando esses recursos. Tantos amigos.
— Me diga você, são? — Ele respondeu calmamente, tragando mais uma vez o cigarro. Eu não sabia como aquela coisa ainda não o havia matado.
— Claro, eu tenho ótimos amigos que conheci nesse que você chama de "novo mundo"! Muita gente legal mesmo! — Respondi de uma vez. A frase soou mais boba do que eu esperava quando disse em voz alta.
— Sim, você conhece. Se você pudesse evitar aquele acidente, e não o fizesse, seria sua culpa dele ter acontecido? — Ele perguntou inesperadamente. De novo aquele assunto sem sentido.
— É claro que não, acidentes acontecem...
— Mas você não se sentiria nem um pouco responsável se pudesse ter evitado várias fatalidades e decidiu não o fazer?
— Eu... eu não sei.
— Deixe-me mudar um pouco a perspectiva. Você está num bar e vê um homem drogando a bebida de uma garota. O que você faz? — Ele respirou fundo e bateu na ponta do cigarro para a brasa cair. A noite ia ficando cada vez mais fria. — Eu não quero que você responda essa pergunta. Eu quero apenas que você pense. Às vezes, não fazer nada é o mesmo que fazer.
— Eu não entendo a conexão de todos esses assuntos. – Resmunguei confuso.
— Veja bem, mesmo agora, eu consegui te entreter o suficiente para que você desistisse de saber por que eu estava num estado decadente na noite passada. Mesmo agora, você tem dificuldades em se importar. Diga-me, esses seus amigos, você disse que os conhece. Mas conhece mesmo? Numa entrevista de emprego, você mostra todas as características ou seleciona algumas?
— Seleciono as melhores. Aquelas que eu acho que vão me fazer ganhar o cargo. — Respondi sem pensar. Meu celular vibrou e a tela se iluminou naquela escuridão. Era uma mensagem de um amigo que eu conhecera na rede de mensagens curtas, anos antes. Instintivamente desbloqueei o celular e li o que ela dizia. Respondi rapidamente e bloqueei o celular novamente.
— Posso pedir que você leia o conteúdo dessa mensagem em voz alta? — Ele solicitou, ainda agachado. Eu não sabia como ele aguentava ficar naquela posição. Parecia tão dolorosa. Aliás, se havia algo no rosto dele, esse algo parecia dor. Eu não reparara, mas havia um cansaço grande em suas expressões. Algum sofrimento desconhecido que o marcara profundamente. Marcas que pareciam ter surgido há muito tempo. Ele sempre fora assim? Eu não conseguia me lembrar. De repente eu me senti mal por, talvez, não ter percebido antes.
— É só uma mensagem de um amigo meu sobre uma série que assistimos em comum... Ele está reclamando.
— E ainda assim, foi o suficiente para quebrar nossa conexão por alguns segundos. Foi o suficiente para você desatar completamente de onde estamos, se transportar para lá e respondê-lo. Esse novo mundo sobrepõe o real, muitas vezes. Quantas dessas vezes eu estive conversando com alguém e sentindo que essa pessoa não estava lá, e nunca esteve?!
— Você continua distinguindo um do outro chamando isso de real... como se a pessoa do outro lado não fosse real também.
— E é? Você realmente conhece essa pessoa? Digo, realmente. — O vento passara a soprar em outra direção e a fumaça do cigarro dele agora me incomodava. Percebendo, ele se levantou e me contornou sem que eu pedisse. — Quando uma pessoa monta um perfil, ela realmente monta com todas as suas características? Boas e ruins? Será que ela vai ser apreciada se ela fizer isso? — Antes que eu pudesse responder, ele continuou. — Quantas vezes alguém se importou com os problemas de outra pessoa na sua timeline? Quanta atenção um pequeno comentário de tristeza ganha? Quanta relevância um vídeo de gatinho tem? As pessoas não estão preparadas para se envolver. Não estão preparadas para mergulhar. Não estão preparadas para serem reais. Elas têm medo do real. O real é dispendioso. O real exige. O real demanda que elas sejam reais, e se envolver com os problemas reais de alguém, é demais.
O cigarro estava no fim. Ele deu uma última tragada e, ao contrário do outro, ele o apagou e colocou a ponta que sobrara no bolso da calça. Minhas pernas tremiam de impaciência e eu segurava o celular com força.
— As pessoas usam esses dispositivos o tempo todo. Sempre que sobra um tempo livre, entre uma tarefa e outra, elas se ocupam com eles. É como se houvesse uma urgência em tomar o silêncio. Como se fosse difícil demais parar. As pessoas estão sempre sozinhas, entediadas e tristes e é esse o remédio que elas usam para isso. Distração. Olhar para dentro é ser real, e isso é difícil. É mais fácil compartilhar piadas. — Ele ainda estava de pé ao meu lado e pegou o isqueiro do bolso. O objeto prateado reluziu quando ele acendeu uma chama. — A chama que existe dentro de nós é poderosa, mas ela queima quando você a alimenta demais. Olhar para dentro arde. Ser real queima.
— E de repente essa conversa se tornou completamente filosófica e uma chatice — Respondi de uma vez. Embora pudesse soar insensível, aquilo me incomodava.
— Sim claro. Vamos ser práticos. — Ele apagou a chama fechou a tampa do isqueiro. — Ontem eu chorei como um imbecil, porque basicamente eu estou completamente sozinho. Porque não aguento mais essas vozes na minha cabeça, me dizendo que sou um lixo.
— E por que você não fala com ninguém? Por que não pede ajuda? — Perguntei de forma inocente. Ele riu. Sua risada sarcástica era também de dor, e lágrimas brotaram de seus olhos.
— Eu pedi. Quantas vezes eu pedi. Cada comentário nesse novo mundo, cada postagem, cada palavra era um pedido de socorro. Na maioria das vezes, era ignorado. Quantas foram as ocasiões que recebi um "tenta reclamar menos" ou um "você reclama demais, minha vida é bem pior que a sua e eu não reclamo". Eu não sabia que eu estava numa competição. Devo dizer que, vez ou outra, alguém atendia. Às vezes é apenas fumaça. Você solta, e incomoda as pessoas. O que realmente importa, é o que você faz com a ponta. Mas é um fardo meu e eu sei que eu tinha que carregar. E ao mesmo tempo...
— Mas você reclama demais mesmo. Está o tempo todo mal, o tempo todo triste... — Ele riu mais uma vez. De dor.
— Esse. Sou. Eu. Esse é o meu eu real. Esse é quem você vai conhecer aqui fora, e lá dentro. Esse sou o eu que ninguém quer, que incomoda, que não agrada. — As lágrimas dele eram pesadas. Eu me sentia mal com aquilo tudo. — E ainda assim, você acredita que você realmente conhece as pessoas. Você defende que elas são reais. Ninguém está preparado para o real.
Ele retirou o isqueiro do bolso mais uma vez, acendeu e travou sua válvula, mantendo—o queimando o gás.
— O acidente que você não impediu. A garota que você não ajudou. — Ele se aproximou ainda mais da borda. — Às vezes não fazer nada é o mesmo que fazer. Viver na borda é tão difícil... você pode cair a qualquer momento. Você pede socorro com lágrimas nos olhos. Você está em desespero e não sabe o que fazer. Algumas pessoas que passam ignoram. Claro, não é problema delas. Se algo acontecer, foi uma decisão sua. Outras passam e lhe seguram os ombros, sussurrando palavras doces. Você se recompõe, por um momento, e quando vê, está de novo na beirada. — A chama do isqueiro bruxuleava com timidez, com seu braço estendido na borda. Ele sorriu. Era um sorriso assustador. — Outras, não satisfeitas, lhe dão um pequeno empurrão. Ou mesmo um sopro. Não é problema delas, mas incomoda.
— Cara, eu não sei o que dizer... me deixe te ajudar. O que houve com você? — Respondi apreensivo. — Sente-se aqui, por favor. Você está muito na beirada.
— Agora você realmente pode ver. Fico feliz que realmente tenha visto, no fim. Você realmente era a única pessoa com quem eu podia conversar. A única que entenderia.
Ele segurava o isqueiro com as duas mãos, trêmulas, numa posição parecida como se orasse para uma força maior.
— Eu matei o Lucas. Não restou nada dele nesse novo mundo. — Ele atirou o isqueiro aceso no escuro. A chama fraca pintava, como um borrão, todo aquele escuro de laranja, que ia desvanecendo a medida em que o objeto caía. — E quando se é real nos dois mundos e isso acontece, não resta nada, em nenhum.
Ele saltou para o vazio. Senti meu coração parar na boca.
— LUCAS! LUCAAAAAAAS! — Gritei, com todo o ar que eu tinha nos pulmões. Minha voz se perdeu no vazio da noite escura.
Eu ainda segurava o telefone firmemente em minhas mãos, agora desligado.
Eu matei Lucas. Enquanto eu caía, ainda podia ouvir meu nome reverberando pelo ar da noite fria.
Eu estava sozinho, como sempre estivera.
Esta história foi publicada originalmente em português (BR) em dezembro de 2016 no WattPad.
“Fumaça” foi meu primeiro conto, inspirado em uma minissérie de TV de 2016, “This New World”.

